Somos mais representadas do que ouvidas
Quando consideramos o papel das mulheres na indústria da comunicação, é comum refletirmos sobre como, em muitas ocasiões, fomos mais silenciadas do que verdadeiramente ouvidas, tanto literal quanto figurativamente.
Os corpos femininos são exibidos, cultuados, comemorados e estampados na história da comunicação brasileira, desde a imagem da camponesa do Leite Moça até a representação da sensualidade feminina em filmes publicitários, outdoors e capas de revistas. Por muito tempo, as mulheres foram muito mais retratadas do que ouvidas, embora, frequentemente, estivessem no centro das decisões de compra. Segundo levantamento da Nielsen, no Brasil 85% da decisão de compra é tomada por mulheres.
Faltam vozes e experiências diversas no mercado. Faltam ouvidos atentos para entender as aspirações e desejos femininos. Quantas campanhas “femvertising” são retiradas do ar, seguidas de pedidos de desculpas, devido à falta de sensibilidade ou entendimento das questões pertinentes?
De acordo com os resultados do Censo 2022, o Brasil possui mais mulheres do que homens em sua população. Dados do IBGE mostram que 54% da população brasileira é negra e, idealmente, a indústria da comunicação deveria refletir essa diversidade. No entanto, isso não acontece. Não deveria ser surpresa que a maioria dos programas de diversidade não esteja de fato aumentando a diversidade. Observamos muitas empresas e agências contratando treinamentos de DEI para reduzir preconceitos no trabalho, alterando suas ferramentas de seleção e contratação e abrindo espaço para sistemas de queixas e denúncias. Não estamos minimizando ou sugerindo que essas ações não sejam importantes; não estamos questionando o meio, mas o fim. Não é um alerta para cancelar os treinamentos, muito pelo contrário, é apenas um questionamento do porquê.
Os efeitos positivos do treinamento de diversidade raramente duram além de um dia ou dois, e muito até provocam uma reação negativa. Por que falham? E não são apenas os treinamentos. Vemos ações incríveis de formação de grupos de diversidade, relatórios, pesquisas e observatórios com levantamentos e números, manifestações e celebrações cada vez mais impactantes de datas importantes.
Sim, muito tempo e dinheiro são investidos. No entanto, há muita frustração, muita resistência e pouco resultado. Por quê? Quando as mudanças ocorrem, são acompanhadas de muita discussão, muito esforço e são extremamente lentas. É claro que as mudanças enfrentam resistência e são fatigantes, mas é mais do que isso. Para que se atinja um impacto positivo da diversidade e da inovação, é preciso ter exemplos. As pessoas precisam ver e experimentar isso no dia a dia. Como diria Albert Schweitzer, teólogo alemão, “dar o exemplo NÃO é a melhor maneira de influenciar os outros. É a única”.
Embora as mulheres, e particularmente as mulheres negras, pessoas com deficiência (PCDs), povos originários, LGBTQIAP+ e aqueles acima de 50 anos, sejam frequentemente as primeiras pessoas a quem associações, veículos e agências recorrem quando precisam mostrar sua diversidade, são as últimas ou sequer consideradas para compartilhar seus conhecimentos. Somos convidadas para participar da foto que vai estampar os relatórios de sustentabilidade, para participar do encontro de mulheres, café da manhã de líderes do mercado, do dia da mulher, índia, negra, com deficiência, mas faltam convites para debater sobre políticas do mercado, para compor conselhos consultivos e deliberativos, reitorias, presidências de associações. Continuamos sendo mais representadas do que ouvidas.
Vemos muitas empresas proclamarem em seus conteúdos e discursos que são diversas e plurais, mas até hoje não encontramos nenhuma que diga: “Gostaríamos muito de ser genuinamente plurais e diversas. Sabemos que é uma jornada longa e difícil, mas colocaremos todos os nossos esforços para que isso se torne realidade. Pretendemos começar desta maneira x e depois seguir por este caminho y.” Seria muito mais verdadeiro. Quem não adoraria torcer, consumir e se aliar a uma empresa com essa declaração?
Os números do relatório do Fórum Econômico Mundial de 2923, o Global Gender Gap, apontam que a paridade de gênero só vai ser alcançada em 131 anos. Estamos falando do ano de 2154! Os rendimentos da mulher, de acordo com o Dieese, ainda são 21% menor do que dos homens. Como diz o economista-chefe do Banco Mundial, “não é uma questão de justiça social. É um pré-requisito para o desenvolvimento econômico, especialmente num momento em que o crescimento global está desacelerando e as economias precisarão reunir todas as suas energias produtivas para gerar uma recuperação duradoura das crises dos últimos anos”.
Quando falamos sobre escolaridade, mulheres brancas com 25 anos ou mais no ensino superior somam 23,5%, enquanto homens brancos são 20,7%. Para homens e mulheres de cor preta ou parda, os números caem para 7% e 10,4, respectivamente, mas ainda assim as mulheres são predominantes.
Mesmo quando falamos de empreendedorismo – caminho que muitas mulheres se veem compelidas a seguir porque não encontram oportunidades no mercado de trabalho adequadas ao seu conhecimento ou à sua necessidade de renda – apenas 46% das mulheres alcançam uma renda acima de 3 salários mínimos, enquanto os homens são 63%. Com isso, 71% das respondentes não conseguem viver apenas com a renda do seu negócio e precisam complementá-la com outro tipo de trabalho.
Em resumo, mulheres, mesmo com mais escolaridade, precisam trabalhar mais para melhorar sua renda e ainda enfrentam a jornada do trabalho não remunerado – os cuidados com a casa, filhos, pais. Todo esse conjunto sobrecarrega e compromete a qualidade de vida, mas ainda assim a mulher incrementa em 5% os resultados financeiros de uma empresa quando ela assume uma posição de liderança na corporação.
Empresas de grande porte vem entendendo a importância da diversidade em sua estratégia de negócios, mas ainda há muito a ser feito e esse movimento também precisa se dar em cascata para as empresas menores.
Acreditamos que existe um caminho que realmente resulta em competitividade, longevidade, sustentabilidade e aumento dos lucros. No entanto, não acreditamos que esse caminho possa ser percorrido sem levar em consideração a equidade de gênero, sem reescrever e reconstruir, desaprender para reaprender. Não é possível seguir adiante achando que apenas acrescentar uma aba ou um botão a mais no site resolverá tudo.
Precisamos apagar muito do que fazia sentido no passado para a cultura da empresa e que agora não faz mais. Precisamos parar de olhar para o outro como se a responsabilidade fosse exclusivamente dele e entender que a sustentabilidade não tem a ver apenas com os outros, mas sim conosco mesmos e com nossa capacidade de desapegar e lutar pelo todo.
Não é possível percorrer esse caminho achando que os programas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) não precisam de quantias significativas de investimento, ou que basta apenas um treinamento para resolver todos os problemas. Precisamos ir além do discurso. Um passo muito importante seria aprender a ouvir.
Seria incrível se realmente existisse um guia definitivo para o sucesso, uma fórmula mágica que nós, como profissionais do mercado ou como parte integrante da diretoria de diversidade da Associação de Profissionais de Propaganda, pudéssemos compartilhar. Infelizmente, não temos! No entanto, podemos assumir um compromisso com o mercado de que trabalharemos para que as mulheres sejam mais ouvidas do que representadas, para que o mercado de comunicação como um todo valorize e respeite as diferenças, e para que combata veementemente o assédio e a discriminação.
Promoveremos espaços de debates entre empresas, agências e estudantes para falar sobre as inserções e os desafios enfrentados pelas universitárias no mercado de trabalho. Trabalharemos para divulgar, orientar e inspirar ações que estão dando certo e espalhar cada vez mais diversidade na indústria da Comunicação. Além disso, daremos foco à Educação. Acreditamos firmemente que para mudar a realidade é preciso ir aonde a jornada profissional começa: a Academia.
É pela Educação que se constrói a sociedade em que desejamos viver. Uma sociedade que reconhece e respeita as diferenças. Uma sociedade que permite a existência plena da diversidade em todas as suas dimensões. Nada menos que isso.
Henriane Morelli é publicitária, fundadora da HRI Digital e Diretora do núcleo de Diversidade e Inclusão da APP Brasil.
Marta Gucciardi é Head de ESG e Diretora do núcleo de Diversidade e Inclusão da APP Brasil.
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