Por que eu cansei do mimimi da branquitude
Andrea Assef – Head de Comunicação do Grupo Publicis
Frantz Fanon, um dos mais importantes pensadores negros do século 20, disse que cada geração deve descobrir sua missão para executá-la ou traí-la. A missão da nossa geração de brancas e brancos não é apenas se indignar com o racismo, é fazer algo de verdade para lutar contra ele! Por isso, não dá mais (pelo menos para mim) para ouvir coisas como “Não sou racista, já namorei uma pessoa negra”. Como explica a professora Lia Vainer Schucman, especialista em relações raciais e autora do livro “Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo”, este tipo de comentário faz tanto sentido como um homem dizer: “Não sou machista! Até sou casado com uma mulher!”
Também não dá mais para não entender do assunto como desculpa para a ausência de opinião ou para atitudes preconceituosas. No mundo pós-George Floyd, você, branca/branco, não tem mais esse direito. Não há mais salvaguarda. Claro, nós, brancos, somos todos racistas estruturalmente falando. Eu cometo gafes racistas – e as cometerei pela vida toda- mas quanto mais estudo e aprendo sobre o tema menos frequentes elas são. Também tenho o privilégio de conhecer pessoas que me corrigem, alertam, ensinam. Mas foram amizades conquistadas, frutos de trocas, de convivência e de afetos. É diferente de alugar a orelha do colega de trabalho com as dúvidas mais banais. Atenção, ele não é Blackpedia!
Antes da pandemia, quando a vida era presencial, uma amiga me contou que sempre que havia alguma matéria no Fantástico sobre questão racial, na segunda-feira ela já se preparava para ser abordada pelos colegas que queriam saber a opinião dela. “Acontece que nem toda segunda-feira eu estava disposta a falar sobre o assunto! Por que ninguém me pergunta qual filme eu assisti? Onde eu fui jantar?” Ah, Andrea, mas também você não sabe o que quer: se a gente ignora o tema somos insensíveis e se vamos debater com o colega negro também é ruim? Vamos lá. Você age assim com o colega branco sempre que sai uma reportagem sobre a Noruega?
O racismo, essa produção científica do século 18, causou um estrago sem proporções na humanidade e nos fez acreditar que nós brancos somos o normal, o padrão. No Brasil, por exemplo, o racismo se aprende na escola. Foi um projeto concebido pelas políticas educacionais da primeira metade do séc. XX. O historiador porto-riquenho Jerry Dávila, autor do livro “Diploma de Brancura”, investigou o que ocorreu entre 1917 e 1945, período da reforma e expansão do ensino brasileiro no Rio de Janeiro, então a capital federal do país, e o que ele encontrou foram documentos que revelam “como uma elite branca médica, científico-social e intelectual emergente transformou suposições sobre raça em políticas educacionais”. Baseados na lógica eugênica, esses senhores, considerados grandes intelectuais da época, foram responsáveis pela construção de um ambiente de desvantagem de brasileiros não brancos negando acesso igualitário aos programas educacionais.
Já contei no meu LinkedIn a discussão acalorada com um grupo de amigos sobre a contratação de pessoas negras quando ouvi pérolas do tipo “Pense nos seus filhos! Se for assim eles não vão arranjar emprego nunca!”. E este mimimi da branquitude não é um fenômeno brasileiro apenas. É mundial. Em uma entrevista ao The Times, em agosto deste ano, Ash Atalla, produtor do The Office e vencedor de vários BAFTA, a premiação da Academia Britânica de Filmes, disse que tem ouvido pessoas brancas reclamando que estão se sentindo marginalizadas e não podem mais aparecer na televisão enquanto a indústria se debate com questões sistêmicas de diversidade. Oi? O produtor egípcio também não acreditou no que ouviu! “Fico surpreso pelo fato de os brancos estarem preocupados em serem marginalizados, uma vez que comunidades sub-representadas suportaram décadas sem uma plataforma adequada na TV”, afirmou ele ao The Times. Ou seja, o pensamento hegemônico da branquitude só muda de endereço. Por isso, celebro tanto a minha querida amiga Samantha Almeida, a primeira mulher negra a assumir a direção de Criação de Conteúdo na TV Globo. É dela uma das frases mais geniais que já ouvi nos últimos tempos: “Seremos a última geração de primeiros”, quando Micaela Coel foi a primeira roteirista negra a ganhar o Emmy Awards este ano. Finalmente o organograma do poder da Globo ganhou cor! E mais: um novo saber, um outro olhar, uma maneira ricamente diferente de criar!
Celebro também o Ad Júnior, uma das pessoas mais brilhantes que conheço, que é head de marketing do Trace Brasil, o maior canal de cultura afrourbana do mundo, lançado em 2019 no país. O conteúdo dos programas é sensacional, tanto que no início deste ano, o Trace Brasil fechou uma parceria com a Globo para levar os conteúdos da produtora multiplataforma para o Globoplay e o Multishow. Sim, cada vez assistiremos e consumiremos entretenimento e cultura plurais feitos por profissionais não-brancos. Os incomodados que se mudem…de planeta!
Cansei também do mimimi da branquitude que insiste em não contratar pessoas negras para cargos de liderança “porque ela/ele/elu não tem X anos de experiência ou porque não quer colocar a pessoa numa posição na qual ela possa ser queimada caso seja muito incisiva em suas posições. Por trás desses argumentos está o que a professora Cida Bento chama de pactos narcísicos da branquitude no seu fantástico trabalho de doutorado: “Pactos Narcísicos no Racismo: Branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público.” Cida Bento explica a convergência de sujeitos brancos em face da defesa de seus privilégios, bem como relata que ao se afirmar em posição de igualdade com os brancos, pessoas negras são tomadas como agressivas, pois o estilo subserviente, embora criticado, ainda é o mais aceito, não sendo entendido como competição ou concorrência ao espaço do branco.
E sim, continuarei corrigindo as gafes racistas dos amigos mesmo escutando bobagens. “Ah, estou muito velho para reaprender a falar, a pensar. A plasticidade do meu cérebro não é a mesma.” Agora, para aprender a mexer no Iphone 18 o cérebro de todo mundo funciona, né? Pessoal, chega de mimimi! Não existe nada mais inovador neste momento do que a diversidade.
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